Filme sobre Amazônia convida a "Pisar suavemente na Terra"
Após a exibição no circuito de festivais, Pisar Suavemente na Terra chegará a plataformas de streaming no Brasil no primeiro trimestre de 2024
5 min de leitura
Em contextos distintos, povos da Amazônia partilham histórias de destruição. A chegada de grandes empreendimentos e projetos extrativistas representa o fim da vida como se conhecia para comunidades e espécies locais. O documentário Pisar Suavemente na Terra, exibido na Alemanha no início de novembro, joga luz sobre os impactos do "progresso” na região.
A narrativa oferece um mergulho nas histórias de três pessoas que lutam para defender a vida na floresta, na Amazônia brasileira e peruana. Entre as vozes que emergem no filme, a força de Tônkyre Akrãtikatêjê (Kátia) impressiona.
Ela é herdeira de uma luta iniciada há quatro décadas por seu pai, Payaré Akrãtikatêjê, liderança histórica de seu povo. Falecido em 2014, ele liderou a resistência à construção da usina hidrelétrica de Tucuruí (PA) pela ditadura militar, iniciada nos anos 1980.
Gerações de luta
A oposição ao projeto quase custou a vida a Payaré, alvo de uma emboscada em que foi atacado a facas. Ameaças e perseguições foram uma constante em sua vida, desde que se colocou no caminho do governo. Apesar da intensa luta, a comunidade se viu obrigada a deixar o território, inundado pela barragem.
Sem escolha, os indígenas foram realocados na Terra Indígena Mãe Maria, em Marabá (PA). Kátia e sua família ainda residem no local, que hoje é atravessado por uma estrada, dois linhões de energia e uma ferrovia da Vale. Desde cedo, ela entendeu que o modo de vida de seu povo não era bem visto fora da aldeia.
O documentário acompanha a sua luta para manter a comunidade conectada com a vida na terra e as tradições culturais em meio à sedução do "dinheiro fácil”, oferecido pelas indenizações de grandes empresas e atividades ilegais.
"Eu busco a autonomia de caminhar com a minha própria perna e dizer para a Vale: eu não preciso disso que tu me dá, porque eu tenho condição de trabalhar”, diz. "Eu falo que esse povo nosso precisa acordar. É não se vender. Precisa ser inteligente, trabalhar com a terra”.
Um convite: dançar a vida
Ao longo do filme, o cenário de desolação social e ambiental contrasta com a força e alegria dos povos que buscam um pisar mais suave sobre a Terra. Em meio às narrativas sobre presente e passado, surge a reflexão sobre futuros possíveis, conduzida pelo pensamento ancestral de Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo.
Na cena de abertura, sua voz acompanha a viagem por um igarapé na Amazônia. "Os humanos estão aqui numa festa para comer o mundo. Por mais que essa festa demore, tem uma hora que vai acabar o bolo”, alerta. "A gente não veio ao mundo para comer o mundo. A gente veio ao mundo para dançar a vida, a experiência da vida com outros seres”.
O escritor recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras demonstra ceticismo quanto a uma mudança de curso, no Brasil e no mundo. Embora o governo Lula tenha retomado uma agenda de preservação ambiental, Krenak rechaça ideias conciliatórias, como o desenvolvimento sustentável e a bioeconomia.
"É como se eles quisessem fazer uma conversa fora do domínio da economia capitalista, que é predatório. O governo pode cometer um erro de esquizofrenia ao tentar lidar com a complexidade climática e o faturamento da economia ao mesmo tempo. Não dá para chutar a bola e defender ela no gol”, critica.
Pisar Suavemente na Terra
Pisar Suavemente na Terra é dirigido por Marcos Colón, realizador de Beyond Fordlândia e professor na Universidade da Flórida. O cineasta brasileiro está na Alemanha para a exibição do longa na mostra competitiva do Greenmotions Film Festival.
Após a exibição no circuito de festivais, Pisar Suavemente na Terra chegará a plataformas de streaming no Brasil no primeiro trimestre de 2024.
O filme busca fazer um convite a esse pisar suave sobre a Terra, que implica uma mudança de postura e de relacionamento com o mundo. A ideia é nos fazer refletir sobre nossas escolhas, pois são as decisões de hoje que irão determinar nosso futuro”, explica Colón.
"Contar histórias é a forma mais poderosa de nos tirar da insensibilidade, ao abrir espaço para outros saberes, conectar com o outro e nos tirar dessa racionalidade hermética. Ao ouvir histórias, somos capazes de ‘sentipensar'”, afirma o cineasta.
Corresponsabilidade pela Amazônia
No documentário, Ailton Krenak passeia de canoa pelo que sobrou do Watu, como o rio Doce, em Minas Gerais, é conhecido entre os Krenak. As águas que transportavam vida em abundância lembram hoje a morte da bacia hidrográfica, consequência do rompimento da barragem da Vale em Mariana, em 2015.
"Seria interessante juntar todos os engenheiros das melhores universidades do planeta e perguntar o que eles têm para oferecer, além de mais do mesmo: mais ferrovias, portos, aeroportos, usinas”, provoca o escritor, ao lembrar que executivos da empresa receberam bonificações após a tragédia.
A influência do poder econômico nas dinâmicas de exploração da Amazônia levanta um debate sobre responsabilização: a quem serve um modelo de progresso que causa destruição no presente e impacta a possibilidade de futuro?
Para Ailton Krenak, o envolvimento com o problema e a criação de soluções ultrapassa em muito o envio de repasses financeiros e outras iniciativas de apoio dos países ricos.
"A Europa acha que faz caridade, tirando um pouco de sua fortuna para ajudar os outros que estão afundando. Mas é ela que afunda o mundo. A gente deveria questionar essa ideia de ajuda e começar a pensar em corresponsabilidade de quem faz a governança global”, afirma.
Adaptado de artigo publicado originalmente no site Made for Minds, sob a autoria de João Pedro Soares