Comprar, doar e poupar
Banqueiro ensina sobre investir com consciência para beneficiar a sociedade e o meio ambiente
10 min de leitura
O dinheiro tem o poder de criar a realidade. Isso é fato. Mas o economista catalão Joan Melé mostra que a humanidade ainda não aprendeu a usar essa energia de maneira positiva.
Em seu livro “Dinheiro e Consciência” , lançado em 2009, ele analisa o modelo de vida contemporâneo e traz uma reflexão bastante profunda sobre o impacto das nossas decisões, inspirando uma série de transformações que podemos fazer a partir do consumo consciente e de uma melhor relação e uso do dinheiro.
De vice-gerente geral do Triodos Bank, considerado o primeiro e maior banco ético da Espanha a fundador da empresa "Taller de Consciência", Melé segue apostando todas as suas fichas, do alto de seus 40 anos de experiência no setor bancário, em reforçar a educação em valores.
Na última década, ele tem percorrido o mundo todo para mostrar que é possível formar uma economia consciente, que investe em empresas sustentáveis, realmente, dispostas a colocar o ser humano no centro da economia e fazer um bom uso do dinheiro que ganham.
Em entrevista exclusiva ao jornal Nosso Bem Estar, Melé fala sobre as origens do seu pensamento e o papel do banco ético nos dias de hoje, que tem justamente a missão de financiar empresas, instituições e projetos que promovem valores culturais e beneficiam a sociedade e o meio ambiente como um todo.
Nosso Bem Estar - Em que momento da sua vida, exatamente, você começou a refletir sobre essa questão do dinheiro?
Joan Melé - O início da minha relação com o dinheiro remete à minha infância. Segundo meus pais, quando eu tinha apenas três anos de idade, peguei a carteira onde eles separavam todo o dinheiro para os gastos do mês, me sentei na varanda com as pernas penduradas entre as barras e comecei a jogar as notas para o ar, observando-as cair lentamente, voando no ar. Não sei se os economistas se referem a isso quando falam sobre a volatilidade do dinheiro (rindo). Na adolescência eu não gostava muito das questões que envolviam dinheiro, finanças, essas coisas todas. Eu me recordo que uma vez, ao entrar em um grande banco na Espanha, disse a um amigo que estava comigo: "A última coisa que eu faria na minha vida seria trabalhar em um banco". Mas o destino que se apresenta não é o que nós gostamos, mas sim o que precisamos. E, curiosamente, quase inexplicavelmente, comecei a trabalhar em uma instituição financeira.
NBE – Como foi lidar com essa realidade?
JM - Pensei que seria provisoriamente, até que eu terminasse meus estudos universitários. Depois de um tempo, eu descobri que eu amava o meu trabalho, pois me permitia interagir com muitos seres humanos e fazê-los mudar suas relações com o dinheiro, o que me ajudou muito no meu crescimento pessoal, inclusive. Quando toda a economia mundial entrou na loucura da globalização, a partir da década de 90, e os bancos - obcecados por crescimento e lucros, especialmente, por meio da especulação - esqueceram que estavam servindo clientes, eu comecei a me sentir realmente desconfortável no meu trabalho.
NBE – Quando decidiu que seria o momento de sair desse modelo vigente?
JM - No momento em que descobri o conceito de banco ético, em 2000, durante um congresso do Banco Mundial, realizado em Barcelona. A partir desse momento, passei a buscar parceiros e dediquei-me a dar palestras para difundir o conceito de banco ético. E não só por ser outro modelo financeiro, mas por ser algo necessário e urgente. Foi aí que me convidaram a abrir o primeiro escritório do Triodos Bank, em Barcelona, e desenvolver o banco ético no meu país, um projeto que teve um sucesso espetacular. Depois de 10 anos, deixei o banco na Espanha para ajudar outros que querem desenvolver projetos similares na América Latina.
NBE - Em relação ao dinheiro, propriamente dito, você acredita que ajuda ou mais nos afasta da realidade?
JM - Eu considero o dinheiro como um caminho de autoconhecimento e crescimento pessoal, mas não é fácil. De fato, nos meus workshops sobre conscientização, dedico-me, precisamente, a isso: observar nossa relação com o dinheiro e quais forças ocultas atuam através dele. Se fizermos este exercício de observação, sincero e consciente, isso certamente irá nos ajudar a crescer. Se continuarmos a manter relacionamentos inconscientes com o dinheiro, como temos tido até agora, continuaremos a ter os mesmos problemas ou talvez até mais sérios.
NBE - O que pode nos dizer sobre essas três principais formas de uso do dinheiro que aparecem descritas no seu livro: comprar, poupar e doar? Como discernir a melhor hora para tomar cada uma dessas ações?
JM - O dinheiro serve, apenas, se houver uma relação entre os seres humanos e, para compreendê-lo, você só tem que ter em mente que: se você naufragar em uma ilha deserta, em um barco carregado com toneladas de ouro, diamantes e milhões de dólares, e estiver sozinho, toda essa riqueza não ajudará em nada. Então, levando em conta que o dinheiro é um relacionamento, toda vez que tomamos uma decisão com ele, temos que pensar em quais consequências ele terá para os outros e também para o planeta Terra.
NBE – Como podemos enxergar tudo isso, na prática?
JM - Por exemplo, quando vamos às compras, temos que pensar que, por trás de cada produto ou serviço, há uma pessoa, ou várias, que também trabalham para suprir suas necessidades e as de suas famílias, que têm filhos tão adoráveis quanto os nossos e que todos nós temos a mesma dignidade humana e respeitamos isso. Quando compramos algo, devemos nos fazer várias perguntas: quem produziu? Em qual país? Em que condições humanas? Como isso afeta o meio ambiente? Se comprarmos apenas por preço, podemos permitir que outras pessoas trabalhem em condições de exploração. Por trás de um preço barato, alguém pagará caro por você: ou seres humanos que trabalham em condições inadequadas ou fabricam produtos de maneira que poluem o meio ambiente. As coisas devem ter um "preço verdadeiro", e isso significa que todas as pessoas devem ser capazes de viver com dignidade e garantir que, com o conhecimento dos processos de produção, a Terra também não seja poluída.
NBE - E quando fala em poupar, a mesma coisa acontece?
JM - Certamente. A maioria das pessoas deposita suas economias em instituições financeiras que fazem investimentos, buscando apenas critérios de lucratividade. Em 40 anos de profissão bancária, nunca me perguntaram: "Se eu trouxer meu dinheiro para esse banco, o que eles farão com ele?" Muitas pessoas criticam bancos e banqueiros, porém, eles confiam todo o seu dinheiro e permitem que eles façam o que quiserem. O conceito de banco ético nasceu, exatamente, da decisão de muitas pessoas que não queriam seu dinheiro aplicado em projetos que elas não conhecem - ou que estão em clara contradição com os seus princípios.
NBE – E sobre doar, como podemos nos tornar mais conscientes dessa força?
JM – A doação é a coisa mais importante que o ser humano pode fazer com o dinheiro. Se, de tempos em tempos, pensássemos em tudo o que recebemos, perceberíamos que o mundo funciona graças à doação. Nossos pais nos doaram tudo até sermos autônomos para vivermos sozinhos; inúmeras escolas, universidades, teatros, centros de pesquisa foram criados graças às doações generosas e, muitas, continuam a funcionar graças ao fato de que há pessoas capazes de doar. Os impostos também são uma forma de doação, embora, neste caso, sejam forçados e, portanto, com menos força transformadora. Neste sentido, na cultura europeia existe um melhor conhecimento e valorização da doação e é por isso que eles também alcançam maiores índices de desenvolvimento.
NBE - Temos presenciado a mais intensa transformação na economia, com a chegada de empresas como Uber, Airbnb, entre tantas outras, que permitem qualquer pessoa gerar sua própria renda dirigindo ou alugando sua própria casa, como nesses dois casos. Como você enxerga essas soluções trazidas, principalmente, pela tecnologia?
JM - Este é apenas um novo modelo de negócio que está chegando, que ainda é baseado, apenas, na busca de benefício pessoal, que não leva em conta as pessoas, e em muitos casos, apenas, tenta evitar o pagamento de impostos. Este modelo funciona, porque apela e encontra uma resposta no egoísmo. No entanto, há outro modelo de negócios em crescimento, que é o das Empresas B (Sistema B ou BCorp). São empresas que colocam o bem-estar das pessoas e o respeito pelo meio ambiente antes do benefício econômico. O que esquecemos é que tudo o que é feito com egoísmo, olhando apenas para benefício pessoal a curto prazo, mais cedo ou mais tarde, se voltará contra nós como um bumerangue e acabaremos pagando as consequências dessa escolha. E é lógico que isso é assim: o que não é bom para todos, não é bom para ninguém.
NBE - O que mais você tem presenciado de positivo no cenário econômico atual? Quais outras iniciativas você poderia compartilhar com os brasileiros, especialmente, aqueles que estão sofrendo com a crise?
JM - Depois de uma crise econômica tão grande quanto essa que experimentamos nos últimos dez anos, especialmente, no sistema financeiro, continuamos permitindo uma economia especulativa. Quando os consumidores não agem com consciência, permitimos que os poderes financeiros assumam o controle do mundo e é isso que está acontecendo hoje, não apenas no Brasil. Existem diversas iniciativas, como o consumo responsável de produtos orgânicos, Comércio Justo, energia renovável, Empresas B, Capitalismo Consciente, entre outras. Todas essas ideias mostram que há uma grande parte da humanidade que está lutando para construir um futuro melhor.
NBE - Muitas pessoas, especialmente a geração Y, se mostram cada vez mais pessimistas em relação à coerência entre discurso e prática das empresas. Você tem visto essa insatisfação, especialmente, entre os mais jovens?
JM - O pessimismo é uma atitude de vida que não entendo. Se temos um modelo que não gostamos, a única opção possível é lutar para mudar e não reclamar daqueles que fazem errado. É verdade que existem muitas pessoas falsas, que até falam sobre questões de Responsabilidade Social Corporativa, mas imediatamente você detecta que isso é errôneo. Nesse caso, não os apoiamos, não compramos suas marcas, aproveitamos as redes para desmascarar as falsas e para promover as marcas que merecem.
NBE - Como é manter uma empresa com propósitos no mundo de hoje, sempre cobrando novos posicionamentos?
JM - Precisamente uma empresa que fundamenta sua visão, missão e valores na dignidade humana e no serviço ao ser humano, tem mais força e recursos para enfrentar as inúmeras mudanças que ocorrem todos os dias na sociedade.
NBE - O Brasil está vivendo uma crise econômica profunda, ocasionada pelos grandes desvios de verba, corrupção e má administração em, praticamente, toda esfera pública. A população sofre com a falta de hospitais, escolas, segurança e outros direitos básicos. Você acredita que essas mudanças, ainda, estão na mão do Estado? Ou, dependemos, cada vez mais, da iniciativa privada oferecer alternativas para preenchermos todas essas lacunas?
JM - O Brasil, como outros países da América Latina, da Europa e do mundo, sofre com os problemas de corrupção, ambição excessiva e economia especulativa. No entanto, o Brasil é um país extremamente rico, tanto humanitário quanto materialmente. O dia em que os cidadãos amadurecerem e começarem a se comprometer com a mudança positiva de seu país e não deixarem tudo nas mãos do governo, isso irá mudar. Nesse momento, o Brasil será capaz de responder às necessidades de todos os seus cidadãos e mostrar que outra economia é possível.
**Entrevista publicada na edição impressa do Nosso Bem Estar em dezembro de 2018.*
- Leia também: O que o seu dinheiro financia?