Como fica a honra do trabalho na Maesa?

Organizações fazem coro para a busca de novas soluções

Vera Mari Damian

Vera Mari Damian

17/04/2023
Como fica a honra do trabalho na Maesa? Vera Mari Damian

7 min de leitura

O atual governo municipal defende ferrenhamente um projeto de ocupação do Complexo da Maesa por meio de parceria público-privada, que, na prática, trata de entregar o local nas mãos da iniciativa privada por 30 anos.

Como agravante, o projeto prevê que a própria prefeitura terá que pagar aluguel (de um imóvel público) pelo uso do espaço destinado às secretarias.

A tentativa de implementar este tipo de parceria público privada segue a mesma cartilha que está sendo ventilada em outras cidades, como a recente iniciativa – sem sucesso - no Parque da Redenção e no Cais do Porto (em curso), na capital gaúcha. As hienas do neoliberalismo avançam sobre os edifícios históricos para tirar seu sangue e sua alma.

Pelas características extraordinárias do Complexo da Maesa, não surpreende a avidez com que o mercado se interesse por explorar comercialmente aquele espaço.

Mas, conforme o projeto da prefeitura, o que teríamos na cidade seria mais um centro comercial em Caxias do Sul, semelhante ao que ocorreu com a sede da tradicional empresa Eberle no centro, e com as antigas cantinas, hoje o espaço A Fábrica, no bairro de Lurdes, e o Pátio da Estação, no Bairro Rio Branco.

Locais que tiveram seus prédios conservados e viraram centros de consumo para uma parcela mais abastada da população. Ali nem sombra dos trabalhadores ou dos movimentos populares e muito pouco de cultura.

O projeto privatista da Maesa prevê, por exemplo, 13.291m² para área de Comércio, 11.140m² para Estacionamento, 4.211m² para Restaurantes, 6.239m² Hotel/Habitação e 1.600m² para o Mercado Público Municipal. Porém, para o Centro de Arte e Cultura prevê apenas 1.600m², ou seja, um espaço de 40m x 40m, que obviamente não vai contemplar as demandas deste segmento quanto menos fomentar a Cultura.

Não foi para se transformar num espaço comercial que o complexo da Maesa foi doado ao município. Foi para fins culturais.

As audiências públicas vêm sendo palco para manifestações majoritariamente contrárias ao projeto e para questionamentos aos gestores públicos sobre que tipo de outras parcerias público-privadas foram buscadas além desta apresentada?

Foram buscados recursos federais? Recursos internacionais?

Foram elaborados projetos via Lei de Incentivo à Cultura que viabilizem o restauro através da conversão de impostos de empresas caxienses?

As respostas não estão sendo dadas pela gestão pública que criou uma secretaria de Parcerias Estratégicas justamente (acredita-se) para diversificar estratégias.

No dia 18 de abril, acontece uma audiência pública na Câmara de Vereadores, às 18h30 e com ela uma nova tentativa de aprofundar o debate. A prefeitura também realiza mais uma audiência (protocolar) no dia 25 de abril e mantém uma página (protocolar) para que a população contribua com críticas e sugestões.

Não privatizem a Maesa!

O clamor para os vereadores e para a administração municipal é de que honrem o trabalho de todos que já se empenharam para pensar o Complexo da Maesa como um bem cultural, público, democrático e para todos. NÃO aprovem este projeto. NÃO privatizem a Maesa.

Vamos encontrar uma solução mais justa, democrática e inclusiva para viabilizar economicamente a restauração e uso da Maesa para desta forma também honrar a memória e o trabalho de todos os trabalhadores e seus familiares, que viveram e perderam suas vidas pela Maesa.

Local que abrigou sonhos

A doação do Complexo da Maesa para o município de Caxias do Sul foi resultado de uma forte mobilização dos mais diferentes setores da comunidade, que resultou no surgimento de vários grupos organizados sob a mesma bandeira: “A Maesa é Nossa”.

O Complexo da Maesa foi doado ao município de Caxias do Sul em 8 de dezembro de 2014, pelo então governador Tarso Genro com a ressalva: “destinado a uso público especial com finalidade cultural”. O imóvel de 53 mil metros quadrados abrigou a antiga fábrica 2 da Metalúrgica Abramo Eberle SA – Maesa - e está localizado próximo ao centro da cidade.

O conjunto de prédios históricos começou a ser construído em 1948 e ali funcionou a empresa até meados da década de 1980. Mas a Maesa foi bem mais do que um palco de linhas de produção. O local abrigou sonhos, constituíram-se famílias, amigos, memórias. Vidas que se formaram e se perderam por conta do trabalho.

A conservação daquele complexo já valeria por ser, um dos melhores exemplares do Brasil da arquitetura manchesteriana. Mas a doação fomentou novos sonhos. O assunto virou tema uníssono na sociedade, que passou a pensar, discutir e propor soluções para o uso democrático e inclusivo do espaço.

A Honra do Trabalho

Eu tive a honra de integrar um dos grupos que se formou e se debruçou espontaneamente para pensar o futuro cultural do lugar.

O movimento chamado Faço Parte Maesa promoveu ações que ficaram na memória, como a sessão de cinema ao ar livre na pracinha em frente à fábrica para apresentar o documentário A Honra do Trabalho, com a participação de antigos trabalhadores da empresa que levaram objetos e suas histórias pessoais para o encontro.

Ao longo dos anos de 2015 e 2016, foram muitos movimentos e muitas reuniões realizadas pela secretaria de Cultura, além de seminários e audiências públicas. Nelas estavam lado a lado historiadores catedráticos como Tania Tonet, Sonia Storchi e Cleudes Piazza, com o escritor José Clemente Pozenato, produtores culturais, artistas, artesãos, trabalhadores, União das Associações de Bairros, arquitetos, agrônomos, urbanistas e incontáveis outros segmentos da sociedade.

Destas reuniões respeitosas e esperançosas surgiram as ideias de implantar ali um Mercado Público, um Museu do Trabalho, uma área de economia criativa, espaço para abrigar a produção cultural, espaços de convivência para crianças, para jovens e para idosos, espaços para a gastronomia típica... e tantas outras ideias.

Ideias que olhavam para o Complexo da Maesa como um espaço público, democrático e inclusivo que devolvesse para toda a cidade os frutos dos trabalhadores que por ali passaram e que formaram a alma do lugar.

Como referência de conceito apontávamos, entre outros, o SESC Pompéia, em São Paulo, com características muito semelhantes ao prédio da Maesa.

Sob a coordenação da então secretária de Cultura, Rubia Frizzo, em 2015 foi realizado o Seminário “Maesa – Conservação, Restauro e Uso”, com a participação do arquiteto paulista Marcelo Ferraz, que trabalhou com a consagrada arquiteta Lina Bo Bardi no projeto do Sesc Pompeia. Projeto que viria a se tornar um exemplo mundial de revitalização. Naquele mesmo seminário pudemos ouvir os arquitetos especialistas na área de conservação do patrimônio, Luiz Antônio Custódio e Ana Elísia da Costa.

Uma comissão multissetorial foi formada para pensar o projeto local. No final de 2015, o projeto base “Intervenção: Recuperação, Ocupação, Uso e Gestão da Maesa” estava pronto e foi entregue ao governo do Estado. Posteriormente seria apresentado na CIC, CDL e em eventos abertos à comunidade.

Em 2016 foi finalizado o tombamento da área e assinado o termo de compromisso entre o município e o governo do estado para execução do projeto ao longo de 12 anos, a partir de janeiro de 2017.

Parou por quê?

Em 2017 a cidade estaria sob nova gestão municipal declaradamente avessa ao tema da Cultura e até o final de 2019 não houve avanços, com exceção da saída da empresa Voges, que ainda ocupava alguns prédios da Maesa.

Em 2020, com a saída do prefeito Daniel Guerra através de impeachment, a ex-secretária Rubia Frizzo é designada pelo novo governo para avançar na implantação do plano.

Mesmo em plena pandemia foram elaborados vários projetos para a ocupação da Maesa, como a transferência para o local de secretarias municipais que pagavam aluguel. A economia – em torno de 1 milhão por ano só com a transferência da Sema – deveria ser convertida para o processo de restauração. Também foram elaborados os projetos de Mercado Público, ciclovias, estacionamento de ônibus de turismo, entre outros.

No final de 2020, mudou novamente o governo e praticamente tudo parou outra vez. Iniciativas cidadãs conclamaram e a população saiu às ruas para abraçar a Maesa (Abrace a Maesa). Em 2022 a União das Associações de Bairro criou a Feira Maesa Cultural, na rua Plácido de Castro, que devolveu um pouco da alma para o lugar.

E em 2023, é o que estamos vendo agora, como relatei lá no início do texto. Parece que retrocedemos, não é? Voltar ao presente, olhar o futuro com esperança, depende também de nós. Não vamos deixar que privatizem a Maesa!

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Vera Mari Damian

Vera Mari Damian

Jornalista, ambientalista e produtora cultural

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