Uma obsessão chamada internet

Especialista em vício na internet alerta sobre os riscos do uso das tecnologias digitais para a nossa saúde pessoal e social

Redação NBE

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18/01/2025
Uma obsessão chamada internet Freepik/NBE

8 min de leitura

É senso comum reconhecer que as tecnologias digitais trouxeram inúmeros benefícios para a nossa vida. Por outro lado, você já deve ter reparado (e talvez até se incomodado com) a forma exagerada com que as pessoas têm feito uso das tecnologias digitais no contexto do convívio social e até profissional.

As redes sociais criaram o fenômeno de aproximar quem está longe e afastar quem está perto. Com a chegada das redes, viu-se até mesmo relações sociais de familiares, amigos e vizinhos acabarem migrando para o ambiente virtual.

Os brasileiros estão entre os que mais tempo passam na frente da internet. De acordo com o Relatório Digital 2024: 5 billion social media users, publicado em 2024 em parceria entre We Are Social e Meltwater**, o Brasil é o segundo país em que os usuários passam mais tempo on-line, com média de 9h13**, atrás apenas da África do Sul com 9h24.

Embora não seja a nação com o maior número de usuários do aplicativo Whatsapp — está atrás da Índia e da Indonésia —, é o país que mais envia mensagens de áudio no mundo, quatro vezes mais do que qualquer outro, e dispara a maior quantidade de mensagens de texto e de conversas que desaparecem. A sensação é de que é absolutamente comum viver desta forma.

Mas nem tudo o que se torna comum deve ser considerado normal e/ou saudável. Quando o assunto é reflexos das tecnologias digitais na saúde mental e social, poucas vozes se levantam, por desconhecimento ou por receio de parecerem retrógradas.

O jornal Nosso Bem Estar foi ouvir um dos maiores especialistas brasileiros neste tema. Cristiano Nabuco é pós-doutor em Psiquiatria e coordenador do Grupo de Dependência Tecnológica da Universidade de São Paulo, com vários livros publicados no Brasil e nos Estados Unidos em sua área de atuação. Nesta entrevista exclusiva, ele fala com a autoridade de quem pesquisa há anos sobre o uso e os riscos das tecnologias digitais na saúde pessoal e social.

Nosso Bem Estar - Como o senhor avalia o uso de tecnologias digitais na infância?

Cristiano Nabuco - A tecnologia não chega nas mãos das crianças por acaso – é entregue pelos pais como uma tentativa de terem mais tempo para realizarem suas próprias atividades como uma espécie de babá eletrônica.

Nos Estados Unidos, por exemplo, alguns carrinhos de bebês já vêm com suporte para tabletes. A criança não tem ainda sequer firmeza para segurar a cabeça, mas já tem um tablete para olhar. Veja que no momento em que a criança está interagindo com o tablete, ela não está interagindo com mais ninguém.

Estas mídias ocupam o espaço que deveria ser preenchido pela interação da criança com outras pessoas a sua volta, o que a auxilia, por exemplo, no desenvolvimento da linguagem.

Criança usando tablet

É esta interação que vai ajudá-la a ir progredindo do ponto de vista cognitivo e, assim, ir aperfeiçoando suas funções cerebrais. Submeter a criança fundamentalmente às interações, através de tecnologias digitais, é o mesmo que desconsiderar a sua real necessidade de progresso.

O brilho e o movimento dos aparelhos estimula a criança a interagir apenas entre o computador e ela mesma, desinteressando-a de exercitar outras formas de interações. Isso vai contra a própria ecologia do desenvolvimento humano. Vamos lembrar que é o brincar com as pessoas que ajuda a criança a desenvolver a capacidade de experimentar emoções alheias, apenas para citar outro exemplo.

NBE - Os pais normalmente acreditam que hoje a tecnologia é importante no desenvolvimento da criança, especialmente dos jovens. Qual a sua opinião?

CN - É um tiro no pé deixar crianças e jovens serem expostas apenas à tecnologia. Já existem pesquisas internacionais indicando que os níveis mundiais de QI – Quoficiente de Inteligência – estão declinando, apesar de toda a informação disponível hoje. Assim sendo, é certo dizer que informação disponibilizada pela tecnologia não está, necessariamente, se tornando conhecimento e aprimorando os recursos intelectuais dos jovens e adultos.

O cérebro é orientado a responder às estimulações ambientais. Quanto mais a atenção for capturada por uma determinada coisa, maior será o envolvimento com ela. Só porque o jovem é mais rápido ou tem mais acessos às mídias digitais, não significa que ele seja mais inteligente, aliás, muito pelo contrário.

A tecnologia de fato está mudando a forma dos indivíduos se relacionarem. Mas, aprioristicamente, penso que não devemos acreditar que esse modus operandi veio para nos tornar fundamentalmente melhores.

Assim, a pergunta que fica é: a geração digital é a que mais recursos possui, se comparada às gerações anteriores ou, a tecnologia está, na verdade, limitando a capacidade intelectual e, portanto, colaborando para criar o que muitos pesquisadores chamam de “geração superficial”? Complementando: se os níveis de QI estão, na verdade, caindo, estará a tecnologia ajudando efetivamente?

NBE - O senhor fala no surgimento da “personalidade eletrônica” (e-personality). Como é isso?

CN - Quando interagimos pessoalmente, o cérebro capta sinais da outra pessoa no sentido de compreender se a informação passada é aceita ou rejeitada. Entretanto, na vida virtual, isso não acontece, colaborando para o aparecimento do que está sendo chamado de “personalidade eletrônica” (e-personality).

Esta personalidade ou este modo de funcionamento tem como características manifestações mais impulsivas, gerando comportamentos de maior agressividade, maior insubordinação e sexualização.

Isso é facilmente perceptível nos comentários de posts, por exemplo. Quanto mais um jovem navega na internet, mais ele fica acostumado com esta personalidade eletrônica mais “liberal”. Aquelas pessoas que possuem uma menor autoestima vão se dar muito bem na vida digital, pois se sentem mais à vontade e sem serem criticados pessoalmente.

NBE - Isso significa que quanto mais um indivíduo navegar, menos interage com o entorno e mais fechado ficará no próprio mundo?

CN - Sim, este internauta específico acaba desenvolvendo menos atividades sociais e, como consequência, uma menor capacidade para interações sociais mais adequadas. Assim, reproduziríamos aquela noção de que “as pessoas ficam mais conectadas com a tecnologia, mas desconectadas do seu entorno”.

Além disto, a internet tem algoritmos (filtro programado nas plataformas de busca) que lhe coloca em contato com as coisas que mais costuma visualizar, criando assim, por exemplo, uma verdadeira “bolha customizada” de informações.

Se olharmos para o passado, vamos ver o quanto as gerações anteriores estavam em contato com informações diferentes daquilo que mais gostavam. A TV, por exemplo, sempre conseguiu nos fazer estar em contato com muitas visões de mundo.

Hoje, na web, não sofremos uma exposição plural, mas uma exposição seletiva de informação. Há pesquisas que já relacionam o aumento do uso da web ao aparecimento de transtornos da personalidade narcisista.

NBE – Em que medida o uso das mídias digitais vira doença?

CN - As dependências comportamentais se baseiam na repetição de determinados comportamentos ao criar efeitos no cérebro exatamente iguais às dependências químicas, por exemplo.

O uso prolongado da internet passa a proporcionar sensações de prazer à pessoa ao estimular a liberação da dopamina – um neurotransmissor associado às situações de recompensa, o que induz o indivíduo a buscar novamente aquela experiência, perpetuando assim um ciclo vicioso.

Tal prazer pode, por exemplo, estar associado às curtidas nas redes sociais tornando o indivíduo “dependente” destes acontecimentos, e portanto, fazendo com que precise de cada vez mais “doses” (ou curtidas) pra ter evocadas as mesmas sensações de prazer.

Ocorre que, em um determinado momento o usuário perde a noção do limite, gerando a já conhecida dependência digital. A tecnologia entrou na vida das pessoas de uma maneira recreativa e de forma ampla. Ainda não está percebida com o perigo e a gravidade que nós profissionais da área de saúde já conseguimos detectar.

NBE - Como as escolas devem se posicionar sobre o uso de celulares e assemelhados no ambiente escolar?

CN - É complicado porque hoje tudo o que se debruça sobre a tecnologia virou sinônimo de algo progressista. Mas já existem pesquisas que mostram que quanto mais tecnológica for a aula, menos aprendizagem estará ocorrendo. Essas pesquisas indicam que quanto mais o indivíduo acessa paralelamente a tecnologia em aula, quanto mais links existirem nestes acessos, menor é a quantidade de informações retidas pelo cérebro humano.

Isso porque a informação à qual a pessoa é exposta, precisa de um tempo e uma velocidade de retenção, para que possa ser “ancorada” em nossa memória. Quando você lê um texto e escreve ao lado ou faz marcações, você está dando um jeito de diminuir a velocidade pra assegurar que aquela informação está “entrando” e sendo “retida”.

É o que chamamos tecnicamente de “input”. Não é a toa que, no Vale do Silício, nos Estados Unidos, onde estão concentrados alguns dos melhores desenvolvedores de tecnologia do mundo, há uma tendência de matricular os filhos em escolas que prezam por ensinar com “nada” de recursos tecnológicos (tech-less schools) para minimizar os efeitos da chamada “epidemia da distração”.

Não considero que a tecnologia “não deva” ser utilizada como uma ferramenta de auxílio pedagógico. Entretanto, se for usada, que não seja da forma que venho observando por aí, sem qualquer preparo.

Saiba mais

  • Livro

“Psicologia do Cotidiano” de Cristiano Nabuco de Abreu, Editora Artmed.

Texto atualizado de matéria publicada originalmente no jornal Nosso Bem Estar em fevereiro de 2017, com autoria da jornalista Vera Mari Damian

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