Navegar na internet é preciso, mas...
Psiquiatra Cristiano Nabuco explica sobre os riscos da tecnologia
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A dependência tecnológica é um fenômeno recente na história da humanidade, mas vem cada vez mais mostrando o seu lado perverso de ser capaz de gerar um vício equivalente àquele gerado por drogas pesadas como cocaína.
Para conhecer os limites e encontrar saídas, o Nosso Bem Estar foi ouvir um dos maiores especialistas brasileiros sobre vício na internet.
Pós-doutor em Psiquiatria, Cristiano Nabuco é coordenador do Grupo de Dependência Tecnológica da Universidade de São Paulo e tem vários livros publicados no Brasil e nos Estados Unidos em sua área de atuação.
Nesta entrevista exclusiva para o Nosso Bem Estar ele fala com a autoridade de quem pesquisa há anos sobre o uso e os riscos das tecnologias digitais na saúde pessoal e social.
Crisitiano Nabuco - Divulgação
NBE – Em que medida o uso das mídias digitais vira doença?
As dependências comportamentais se baseiam na repetição de determinados comportamentos ao criar efeitos no cérebro exatamente iguais às dependências químicas, por exemplo.
O uso prolongado da internet passa a proporcionar sensações de prazer à pessoa ao estimular a liberação da dopamina – um neurotransmissor associado às situações de recompensa, o que induz o indivíduo a buscar novamente aquela experiência, perpetuando assim um ciclo vicioso. Tal prazer pode, por exemplo, estar associado às curtidas nas redes sociais, tornando o indivíduo “dependente” destes acontecimentos, e portanto, fazendo com que precise de cada vez mais “doses” (ou curtidas) pra ter evocadas as mesmas sensações de prazer. Ocorre que em um determinado momento o usuário perde a noção do limite, gerando a já conhecida dependência digital. Ainda que este diagnóstico não seja reconhecido de maneira oficial, já está sendo bastante estudado.
Para concluir, eu diria que a tecnologia entrou na vida das pessoas de uma maneira recreativa e de forma ampla. Ainda não está percebida com o perigo e a gravidade que nós profissionais da área de saúde já conseguimos detectar.
NBE – O senhor fala no surgimento da “personalidade eletrônica” (e-personality). Como é isto?
Quando interagimos pessoalmente, o cérebro capta sinais da outra pessoa no sentido de compreender se a informação passada é aceita ou rejeitada. Entretanto, na vida virtual, isso não acontece, colaborando para o aparecimento do que está sendo chamado de “personalidade eletrônica” – (e-personality). Esta personalidade ou, este modo de funcionamento, tem como características manifestações mais impulsivas, gerando comportamentos de maior agressividade, maior insubordinação e sexualização. Isto é facilmente perceptível nos comentários de posts, por exemplo. Quanto mais um jovem navega na internet, mais ele fica acostumado com esta personalidade eletrônica mais “liberal”. Aquelas pessoas, que possuem uma menor autoestima vão se dar muito bem na vida digital, pois se sentem mais à vontade e sem serem criticados pessoalmente.
NBE – Isto significa que quanto mais um indivíduo navegar, menos interage com o entorno e mais fechado ficará no seu próprio mundo?
Sim, este internauta específico acaba desenvolvendo menos atividades sociais e, como consequência, uma menor capacidade para interações sociais mais adequadas. Assim, reproduziríamos aquela noção de que “as pessoas ficam mais conectadas com a tecnologia, mas desconectadas do seu entorno”.
Além disto, a internet tem algoritmos (filtro programado nas plataformas de busca) que lhe coloca em contato com as coisas que mais costuma visualizar, criando assim, por exemplo, uma verdadeira “bolha customizada” de informações. As redes sociais são um exemplo claro disto. Se olharmos para o passado vamos ver o quanto as gerações anteriores estavam em contato com informações diferentes daquilo que mais gostavam. A TV, por exemplo, sempre conseguiu nos fazer estar em contato com muitas visões de mundo. Hoje, na web, não sofremos uma exposição plural, mas uma exposição seletiva de informação. Para concluir, há pesquisas que já relacionam o aumento do uso da web ao aparecimento de transtornos da personalidade narcisista.
NBE - Como o senhor avalia o uso de tecnologias digitais na infância?
A tecnologia não chega nas mãos das crianças por acaso – é entregue pelos pais como uma tentativa de terem mais tempo para realizarem suas próprias atividades como uma espécie de babá eletrônica. Nos Estados Unidos, por exemplo, alguns carrinhos de bebês já vêm com suporte para tabletes. A criança não tem ainda sequer firmeza para segurar a cabeça, mas já tem um tablete para olhar. Veja que, no momento em que a criança está interagindo com o tablete, ela não está interagindo com mais ninguém. Estas mídias ocupam o espaço que deveria ser preenchido pela interação da criança com outras pessoas à sua volta. É esta interação que vai ajudá-la no desenvolvimento da linguagem, a ir progredindo do ponto de vista cognitivo e, assim, ir aperfeiçoando suas funções cerebrais. Submeter a criança fundamentalmente às interações através de tecnologias digitais é o mesmo que desconsiderar a sua real necessidade de progresso. O brilho e o movimento dos aparelhos estimula a criança a interagir apenas entre o computador e ela mesma, desinteressando-a de exercitar outras formas de interações. Isto vai contra a própria ecologia do desenvolvimento humano. Vamos lembrar que é no brincar com as pessoas que a criança desenvolve a capacidade de experimentar emoções alheias, apenas para citar outro exemplo.
NBE - Os pais normalmente acreditam que hoje a tecnologia é importante no desenvolvimento da criança, especialmente dos jovens. Qual a sua opinião?
É um tiro no pé deixar crianças e jovens serem expostas apenas à tecnologia. Já existem pesquisas internacionais indicando que os níveis mundiais de QI - Quoficiente de Inteligência - estão declinando, apesar de toda a informação disponível hoje. Assim sendo, é certo dizer que informação disponibilizada pela tecnologia não está, necessariamente, se tornando conhecimento e aprimorando os recursos intelectuais dos jovens e adultos.
O cérebro é orientado a responder às estimulações ambientais. Quanto mais sua atenção for capturada por uma determinada coisa, maior será o envolvimento com ela. Só porque o jovem é mais rápido ou tem mais acessos às mídias digitais, não significa que ele seja mais inteligente, aliás, muito pelo contrário. A tecnologia de fato está mudando a forma dos indivíduos se relacionarem. Mas, aprioristicamente, penso que não devemos acreditar que esse modus operandi veio para nos tornar fundamentalmente melhores. Assim, a pergunta que fica é: a geração digital é a que mais recursos possui, se comparada às gerações anteriores? Ou, a tecnologia está, na verdade, limitando a sua capacidade intelectual e, portanto, colaborando para criar o que muitos pesquisadores chamam de “geração superficial”? Complementando: Se os níveis de QI estão, na verdade, caindo, estará a tecnologia ajudando efetivamente?
NBE - Como as escolas devem se posicionar sobre o uso de celulares e assemelhados no ambiente escolar?
É complicado porque hoje tudo o que se debruça sobre a tecnologia virou sinônimo de algo progressista. Mas já existem pesquisas que mostram que quanto mais tecnológica for a aula, menos aprendizagem estará ocorrendo. Estas pesquisas indicam que quanto mais o indivíduo acessa paralelamente a tecnologia em aula, quanto mais links existirem nestes acessos, menor é a quantidade de informações retidas pelo cérebro humano. Isto porque a informação à qual a pessoa é exposta, precisa de um tempo e uma velocidade de retenção, para que possa ser “ancorada” em nossa memória. Quando você lê um texto e escreve ao lado ou faz marcações, você está dando um jeito de diminuir a velocidade pra assegurar que aquela informação está “entrando” e sendo “retida”. É o que chamamos tecnicamente de “input”. Não é à toa que no Vale do Silício, nos Estados Unidos, onde estão concentrados alguns dos maiores desenvolvedores de tecnologia do mundo, há uma tendência de matricular os filhos em escolas que prezam por ensinar com “nada” de recursos tecnológicos (tech-less schools) para minimizar os efeitos da chamada “epidemia da distração”.
Não considero que a tecnologia “não deva” ser utilizada como uma ferramenta de auxílio pedagógico. Entretanto, se for usada, que não seja da forma que venho observando por aí, sem qualquer preparo.
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