Maternar um mundo novo
Mães e profissionais falam sobre a solidão de gestar em plena pandemia
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Nanda Barreto*
Enquanto o planeta estava em luto, elas gestavam. Em meio a tantas despedidas, elas foram portais de cheganças. Nas linhas a seguir, alinhavamos histórias de mulheres que povoaram a Terra durante a pandemia.
Gestar nova vida e parir o próprio mistério. Morrer e dar nascimento a si própria. Tornar-se mãe é um processo de transformação radical. Muda o corpo, os quereres, a rotina, os papéis sociais. Agora, imagine viver essa montanha-russa de mudanças durante a maior crise sanitária do país, vendo a barriga crescer no espelho ao mesmo tempo em que as palavras "grupo de risco" estavam estampadas na testa e o processo de vacinação andava a passos de formiguinha.
Essa foi a realidade de milhares de brasileiras e foi preciso resiliência e cuidados redobrados. A ginecologista e obstetra Luiza Marouelli, 32 anos, viveu esse cenário de diferentes ângulos. "Gestei e cuidei de dezenas de mulheres que gestaram na pandemia. Não foi fácil. Estamos vivendo há mais de dois anos um estado de medo e incertezas sobre o futuro da humanidade. A ideia de estar gestante num período desses pode ser aterrorizante", pontua.
Para Luiza, a solução para dar conta dos desafios foi ajustar o foco apenas naquilo que estava sob o seu controle.
"Desenvolvi o hábito de meditar e passei a dedicar mais tempo para meu autocuidado durante a gestação. Isso me ajudou a atingir um estado de espírito otimista com a minha gestação e estar bem para cuidar de mim e de outras mulheres".
Na experiência da orientadora educacional Ana Paula Freitas Madruga, 40, a solidão foi uma das marcas da sua gestação.
"Eu sempre saí muito, trabalhando fora. Mas na gravidez eu estava no home-office e fiquei muito solitária. Vivi uma gestação solo, sem o pai. Também não pude ver muitos amigos, nem fazer chá de fraldas. As pessoas que iam me visitar ficavam na calçada, de máscara. Também tive crises de ansiedade, principalmente ao assistir reportagens que retratavam gestantes com covid-19. A terapia me ajudou bastante", salienta.
Medos e coragens
A bióloga Cíntia Barenho, 40, já estava com a segunda gestação planejada quando a covid-19 chegou.
"Desde que a gente resolveu ter filhos, a ideia era tê-los com um intervalo próximo. Mas quando me vi grávida no início da pandemia foi um tanto desesperador. Senti medo do que podia acontecer com a nossa família e de não estar presente pro meu filho que já estava aqui. Dava um temor sair de casa até mesmo para fazer o pré-natal", relembra.
Mãe de 7 filhos, a doula Anna Cony acompanhou a família da Cíntia e de outras tantas no período.
Foto Rafa Rosa
"Foi um grande desafio e uma honra maior ainda. Para seguir atendendo partos, no começo da pandemia precisei de muita coragem, um pouco de subversão inerente e uma confiança inabalável: se estes bebês escolheram nascer numa pandemia, eu preciso confiar que eles sabem o que estão fazendo", sustenta.
Exaustas e sobrecarregadas
E depois de paridos?
Com os bebês no colo, as dificuldades tornaram-se outras: um estudo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) mostra que quase 84% das mães sentiram maior sobrecarga em cuidar dos filhos durante a pandemia.
Uma outra pesquisa, realizada pela startup Famivita, com 7.500 brasileiras, expôs um quadro doloroso: 39% das mães com filhos pequenos perderam o emprego durante a pandemia, enquanto que 52% delas perderam renda. Ou seja, muito trabalho e pouco apoio foram o pano de fundo da maternidade de 2020 para cá.
Mãe da Ananda, de 05 anos, a psicóloga especializada em saúde mental materna, Camila Barros, 37, conta que a fez reviver, de alguma forma, o seu período de puerpério.
"Confesso que o isolamento da pandemia me trouxe as mesmas sensações de solidão, de sobrecarga, de esgotamento. Porque a rede de apoio que eu consegui estabelecer ao longo de três anos acabou de um dia pro outro. Fora isso, a perda dos espaços conquistados - trabalho, rodas de amigos, coisas que fazíamos na rua. Foi reviver um puerpério com uma criança com outras necessidades que muitas vezes não conseguia suprir. Além, é claro, do medo constante de morrer, de perder alguém próximo".
Esperança ativa
De volta ao consultório, Luiza revela que a maternidade contribuiu para que ela tivesse ainda mais empatia com suas pacientes e esperança ativa no futuro.
"O que mais me motiva na criação do Martin é a minha esperança de um futuro melhor. Uma criança que tem o direito de nascer e existir com respeito e dignidade é uma criança que carrega o potencial de contribuir para um mundo melhor no futuro. Busco inspiração para o meu maternar na força de mulheres que se apoiam, porque ninguém é mãe sozinha, e busco esperança para o futuro em cada criança que assisto nascer".
Na avaliação da médica, a responsabilidade que o momento exige é imensa.
"Temos uma responsabilidade enorme de explicar para nossos filhos sobre os fatos históricos que vem acontecendo no mundo nos últimos anos. Precisaremos ensinar para as gerações futuras que vai ser necessário bastante interesse e participação política para que a gente possa construir um futuro melhor para todos".
O olhar de Cíntia também vai nessa direção.
"Tenho buscado um maternar mais próximo de valores como amor, afeto, esperança, cuidado, liberdade e justiça social. Hoje, como adulta, também vejo como a relação com meus pais poderia ter sido de outra forma e isso me inspira a buscar informação, ter acesso a coisas que eles não tiveram e tentar fazer diferente. E me inspiro, principalmente, nos meus filhos, em ver a forma como eles lidam comigo, com os outros, com as emoções. Isso tudo me desperta".
*Nanda Barreto é jornalista e mãe da Flora Beatriz, gestada e parida durante a pandemia