Luz no fim da tela
Exemplo para barrar o uso excessivo das telas entre os jovens vem do próprio Vale do Silício
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A desintoxicação digital está em alta. No Nosso Bem Estar temos alertado há vários anos sobre os malefícios do uso irrestrito das telas na formação psíquica e social dos indivíduos, mas só recentemente o assunto tem ganhado o debate público e a atenção de escolas, governos e pais.
Em 2024, vimos países aprovando leis restritivas ao uso de celulares no ambiente escolar e o Brasil iniciou 2025 proibindo o uso dos celulares no ambiente escolar em todo o território nacional. Isso porque, depois de anos na liberalidade total, ficou evidente que a conexão irrestrita desconectou as pessoas do que realmente importa e gerou doenças físicas, psíquicas e sociais.
De acordo com o Relatório Digital 2024: 5 billion social media users, publicado em 2024 em parceria entre We Are Social e Meltwater, o Brasil é o segundo país em que os usuários passam mais tempo online, com média de 9h13, atrás apenas da África do Sul com 9h24.
Ou seja, a internet desempenha um papel significativo na vida diária dos brasileiros, mas é fácil constatar que grande parte do tempo dedicado às atividades online não é exatamente o que se pode chamar de produtiva ou benéfica.
A situação se agrava quando o “usuário” é criança, ou mesmo adolescente.
Pesquisas sobre os hábitos de consumo digital do jovem, realizadas em 2019 pela Infobase Interativa, davam conta de que os jovens já estavam com problemas causados pelo uso abusivo das redes, entre eles falta de produtividade e atenção, além do aumento de ansiedade, depressão, queda de autoestima, entre outros.
Os resultados das pesquisas mostraram que 35% dos jovens acreditavam que as redes sociais trazem muita negatividade, enquanto 18% dos entrevistados apontavam que elas causam também uma pressão social desnecessária.
No ranking geral, o Instagram apareceu como a pior rede social para a autoestima. No universo da pesquisa, 72% de pessoas disseram que as redes sociais diminuem a concentração e 68% admitiram que plataformas como Facebook, Instagram e Snapchat às vezes fazem com que elas se sintam ansiosas, tristes e depressivas.
Novos distúrbios como o FOMO (Fear Of Missing Out) – uma sensação parecida com a abstinência de drogas pelo simples fato de a pessoa não conseguir acessar o que está acontecendo naquele exato momento na Internet – tem preocupado as autoridades em saúde.
Eles já sabiam
Pode até soar estranho que Bill Gates, fundador da Microsoft, tenha limitado o acesso a uma tecnologia que ele mesmo ajudou a criar. Seus filhos passaram toda a infância e parte da adolescência sem telefone celular e tablet.
O mesmo aconteceu na casa do CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, que anunciou que manteria seus filhos longe das telinhas até que tivessem condições para absorver a grande quantidade de informação compartilhada nas redes que, ironicamente, ele também ajudou a formar.
A mesma restrição aconteceu na casa de Steve Jobs (1955-2011), fundador da Apple, enquanto seus filhos ainda eram pequenos. Todos foram impedidos de utilizar o iPad, uma das principais criações de Jobs.
Todo esse controle vindo dos pais do Vale do Silício, no entanto, é algo muito diferente do que estamos acostumados a ver por aí, com uma quantidade cada vez maior de bebês, crianças e adolescentes utilizando esses dispositivos sem qualquer restrição de tempo ou respeito aos limites de espaço.
Tornou-se comum vermos smartphones e tablets nas mãos de bebês durante as refeições, servindo de distração nos momentos que deveriam ser aproveitados para interagir com a família.
Acionistas da Apple chegaram até a escrever uma carta aberta compartilhando a preocupação que tinham com o uso desses dispositivos, especialmente pelas crianças, enfatizando que existe uma clara necessidade de oferecer aos pais mais oportunidades e ferramentas para que assegurem que os jovens estejam usando os produtos da melhor maneira possível.
Discursos à parte, os filhos dos criadores do Vale do Silício, onde estão instaladas as principais empresas que produzem essas tecnologias altamente viciantes, parecem ser os únicos que estão a salvo dos produtos que seus pais criaram. Enquanto isso a maioria das pessoas sofre com a falta de sono, depressão e até casos de suicídios dentro da família, atribuídos ao uso excessivo desses aparelhos.
Entre lousas e brinquedos de madeira
No Vale do Silício tem crescido o número escolas sem tablets e computadores, onde o celular é proibido em contrato. No Waldorf of Peninsula, uma dessas escolas particulares onde são educados os filhos de funcionários da Apple, Google e outras empresas de tecnologia, as telas só entram quando eles chegam ao ensino médio.
Aula no Waldorf School of the Peninsula (Instagram)
"Se você coloca uma tela diante de uma criança pequena, você limita suas habilidades motoras, sua tendência a se expandir, sua capacidade de concentração" afirmou Pierre Laurent, pai de três filhos, engenheiro de computação na Microsoft, em entrevista ao repórter Pablo Gimón, do jornal El País.
A reportagem faz parte da série “Crescer Conectados” e reúne uma série de artigos que exploram a vida de crianças e adolescentes em um mundo digital. O conteúdo reflete o que já sabemos: os adultos que melhor entendem a tecnologia dos celulares e dos aplicativos querem que seus filhos se afastem dela, uma vez que os benefícios das telas na educação infantil são limitados, enquanto o risco de dependência é alto.
"Na escala entre doces e crack, o uso excessivo de telas está mais próximo do crack", emendou Chris Anderson, ex-diretor da revista Wired, considerada a bíblia da cultura digital, na mesma reportagem. “Enquanto os filhos das elites do Vale do Silício são criados entre lousas e brinquedos de madeira, os das classes baixa e média crescem colados em telas”, complementa.
E não precisa ser nenhum Bill Gates para saber que, quando o hábito vira vício, é preciso cuidar para que o consumo dessa tecnologia, desenhada justamente para caber na palma da mão, não cause maiores danos. Por isso, impedir o consumo exagerado, mesmo na dúvida, é sinal de prudência.
O cientista Albert Einstein, que faleceu na década de 1950, já dizia na época: “se tornou aparentemente óbvio que nossa tecnologia excedeu nossa humanidade”. Cuidemos, então, para que o óbvio não seja aceito como algo natural.
Observação: Parte desta matéria foi originalmente publicada em 2019 nas páginas impressas do Nosso Bem Estar sob o título “O perigo que vem das telinhas”, com autoria de Felipe Marcel.
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