O tempero da vida
Nossa relação com a comida envolve afeto e memórias, nos conecta com o outro e reforça nossa identidade cultural. Mas qual o segredo para uma receita infalível?
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Você nasce. Vem o choro e o estranhamento desse mundo que o recebe; tudo parece um tanto brutal se comparado ao ventre materno seguro e sereno, onde seu corpo foi tomando forma. Mas então, você é colocado nos braços dela - reconhece o cheiro, a voz e pela primeira vez, sente pousar o olhar materno sobre você.
Neste colo protegido e acolhedor você sacia a fome pela primeira vez. É nesse momento da amamentação que você recebe o primeiro referencial de segurança, afeto, carinho e satisfação. Assim, pelo resto de sua vida, vai associar - consciente ou inconscientemente - o ato de ser alimentado ao amor e cuidado.
Essa percepção está diretamente relacionada com a primeira experiência ligada à alimentação, que envolve o leite, o colo e o olhar da mãe - e que vai se tornar um registro profundo da ligação entre comida e afeto.
Do mesmo modo, os aspectos negativos que podem surgir em meio a esses primeiros momentos vinculados à nutrição do bebê também podem afetar a forma como essa associação ocorre e ressurge em momentos diversos da vida. Mas a questão vai além.
Memória e afeto no prato
Ao longo da vida, vamos criando um acervo de memórias ligadas à experiência da alimentação e essas memórias se tornam parte de nossa história.
É uma ligação complexa, que perpassa os sentidos, a questão social, cultural e a própria ciência. De acordo com o neurologista e psiquiatra Giuseppe Lerace (ex-professor da Universidade de Messina, Itália, e estudioso das influências psicossociais na relação dos homens com a comida), existe uma conexão direta entre o chamado lobo límbico (centro das emoções no cérebro) e o córtex gustatório e olfatório - regiões onde os sabores e odores são processados.
Ou seja: sabores e odores têm a capacidade de ativar gatilhos ligados às emoções e a comida pode sim influenciar o humor, o estado emocional do ser humano.
Isso ajuda a explicar a sensação que experimentamos ao provar certos alimentos. Levamos à boca aquele pedaço de bolo morno ou uma simples colherada da sopa que ainda ferve no fogão e imediatamente, somos transportados para outro tempo e lugar. Em segundos, nos conectamos a sensações esquecidas, a breves recortes da nossa história que a vida vai deixando pelo caminho.
A receita infalível
Quem nunca sentiu saudade de uma receita de infância, de um prato simples, mas inesquecível, preparado pela avó, pelo pai ou pela mãe?
Quantas vezes um aroma ou sabor despertou algo familiar e nos levou para outro lugar, outra época?
Nossa história de vida guarda esses pequenos fragmentos do tempo - drágeas de saudade, alegria, prazer ou contentamento, estrategicamente escondidas em gavetas que podem ser abertas a qualquer instante: basta um cheiro de pão quente pela casa, o sabor do molho encorpado e peculiar que cobre o macarrão, o aconchego do chazinho de erva-cidreira antes de dormir.
Muito além de alimentar o corpo, essas porções de amor e cuidado vão alimentando a alma. Cozinhar para alguém é um passo de aproximação, um jeito significativo de estreitar laços e espalhar afeto.
Na hora de encarar o fogão, vale adaptar o passo a passo, trocar o item que não tem em casa, colocar um bocadinho de autoria no preparo e, principalmente, escolher ingredientes frescos e saudáveis.
Não precisa ficar perfeito, não precisa ser caro ou complicado. Que seja apenas reconfortante e gostoso, feito abraço. E vale lembrar: cantoria é tempero, as risadas na cozinha e o carinho, também.
A receita infalível é sempre a mesma: aquela feita com generosidade e amor.