Festival Cio da Terra completa 40 anos
Realidade de 2022 inibiu comemorações
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Participei do Festival Cio da Terra, que completa 40 anos sem muitos holofotes, já que as atenções no país inteiro estão voltadas para as eleições que podem definir os rumos democráticos do Brasil.
Realizado nos dias 29, 30 e 31 de outubro de 1982, em Caxias do Sul, o Festival até hoje é lembrado com muito carinho por todos que estiveram envolvidos de alguma forma.
Em anos anteriores, grupos locais organizaram eventos comemorativos, como a exposição de fotos para comemorar os 15 anos do evento, e um encontro público com parte dos organizadores e a participação do músico Nelson Coelho de Castro, para marcar os 25 anos. Ambos realizados em Caxias do Sul. Este último, no Zarabatana Café, em 2007, com exposição de fotos, música e muita emoção. Um casal que se conheceu no Festival e acabou constituindo família veio especialmente de Curitiba para participar. Outros se reconheciam nas fotos antigas. Organizadores do evento se debulhavam em lágrimas e crianças que apareciam nas fotos em 1982 estavam ali se apresentando no palco como músicos da nova geração.
Parte destas histórias está guardada no Blog Cio da Terra, elaborado pelo publicitário Álvaro Garcia, que recentemente relatou episódios do evento como convidado da Biblioteca Humana, da Feira do Livro de Caxias do Sul.
O espírito da época está documentado no filme Cio da Terra, de Cacá Nazário e Éber Marzulo, com depoimentos de pessoas que participaram da programação do festival. É o caso dos músicos Nei Lisboa, Jorge Mautner e Ednardo, do cineasta Giba Assis Brasil e do jornalista Eduardo Bueno.
Muitas histórias estão ainda vivas no coração e memória dos 15 mil jovens que estiveram no Festival. Pessoas que já estão com sua “juventude acumulada” e aos poucos vão deixando as lembranças em cantinhos da (ainda) memória.
Mas tudo o que lembram vem com muito carinho. E saudades. E esperança. E crença de que a gente pode evoluir enquanto seres humanos e sociedade.
Mesmo em tempos difíceis como agora, a utopia segue no horizonte. ”Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar", como registrou Eduardo Galeano.
Fotos arquivo pessoal Vera Mari Damian
Do blog Cio da Terra
“O pessoal não sabia o que dizer, estava simplesmente maravilhado.
Afinal, o Rio Grande do Sul, nunca tinha visto nada igual: cerca de 15 mil jovens, durante três dias e três noites conviveram com plena liberdade, debatendo, ouvindo músicas, assistindo peças de teatro, dançando, ou apenas circulando pelo parque e tomando sol. Muita gente diferente de todo o Rio Grande do Sul, vestindo jeans, calções, biquinis, bombachas, e no frio da noite cobrindo-se com cobertores.
Também um considerável consumo de álcool. E nenhum desentendimento, nenhuma briga. Alguns bem-humorados diziam que tudo estava na perfeita paz, porque não havia policiais no parque, ninguém para vigiar ou reprimir. Os dois rapazes que tiraram a roupa, no domingo, por exemplo, causaram certa curiosidade, mas apenas no início - um deles permaneceu nu a tarde inteira, e depois do primeiro impacto, ninguém mais prestou atenção a ele, que circulava com o corpo pintado de têmpera azul.
Nos caminhos e nos pavilhões vendiam-se jornais políticos, todo tipo de artesanato, camisetas com inscrições. Nos debates, que versavam sobre os mais diferentes assuntos: mulher, ecologia, música, teatro, literatura, cinema, negro, política sindical, etc., havia sempre muita gente participando, perguntando e dando opiniões.
A proposta básica do Cio da Terra como O Primeiro Encontro da Juventude Gaúcha se realizava.
Convivência era essa proposta, alimentada nos três dias do Cio por uma exemplar e elogiável auto-organização. Não havia nenhuma equipe encarregada de recolher o lixo, mas os organizadores distribuíram sacos de lixo e as próprias pessoas, espontaneamente, se encarregavam de limpar toda a àrea.
Através dos microfones trocavam-se recados, dava-se avisos e alertavam para que todos tivessem cuidado com fogueiras, que a disciplina da liberdade era importante para a continuação deste e de outros Cios.
Não faltou comida, desde os pratos naturais, até os pratos feitos, passando pelo infalível e necessário "cachorro-quente".
O chimarrão correu solto, não faltou bebida nem locais para a armação de barracas, embora os sanitários fossem pouco para tanta gente.
E naquela paz, uma sensação de alegria se multiplicava sob o sol e a lua cheia iluminando milhares de jovens que permaneceram diante do enorme (e muito bem projetado) palco de estruturas, duas noites inteiras, até o ciclo do sol se completar com a chegada dos primeiros raios de sol da manhã.
A sonorização da Odos e a iluminação da Focus foram perfeitas, dignas do palco e de quem subiu nele para cantar.” (JUAREZ FONSECA - Matéria do Jornal Zero Hora - Porto Alegre - RS - 01/02/novembro/1982)