Casca vazia
Os ninhos dos pássaros se misturam ao meu
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Meu pai vive torcendo pra aparecer condomínio de joão-de-barro em forquilha de árvore do quintal. Ele fica assistindo João voar na esperança da ave construir morada perto do olho dele. Meu pai quer assistir a vida acontecer. Eu também gosto de assistir a vida acontecer. Outro dia deitei no chão, fiquei olhando as nuvens no céu, e perguntei:
- Para onde vocês VÃO com tanta pressa?
Quando eu tinha 12 anos, um ninho de tico-tico se fez numa samambaia bem em frente à minha janela. Injusto dizer que o ninho se fez quando o Tico carregou aquilo tudo de graveto, mas pra mim a arquitetura se deu no compasso de um pio.
Aí, chegaram os ovos, depois a espera, até que aconteceu uma eclosão de feiura, mas feiura prometedora. Eram três e eles faziam dança da fome cada vez que a mãe chegava da caça. As primeiras penas enfeitaram a carne e o desencanto virou graça.
Os moleques iam crescendo e eu junto. Mas teve uma noite, em que ouvi barulho alto. Não sabia se era no sonho ou na carne.
Quando acordei pela manhã, corri até a samambaia e descobri o ninho vazio. Tomei um café doído e fui pra escola porque luto é coisa que se chora por gente. Fiquei amuada num canto do pátio e minha amiga perguntou. Não aguentei responder só com o verbo, tive de regar as palavras por cima. Sempre achei ruim essa mania úmida. Gosto de farinha. Seca, solta, sopra e voa.
Casca de ovo tem cálcio e vira farinha de adubar a terra. Sabia?
Desde aquela samambaia, parei de adotar passarinho do quintal e deixei a natureza se resolver sozinha. O desapego foi se entranhando em mim pela dor.
Com 13, descobri que corpo de gente é igual à casca de ovo. O homem que eu tinha adotado como avô quebrou a casca e voou. Me contaram e eu sabia. Mas saber de ouvir é diferente de saber de olhar. E a gente só sabe mesmo quando a vida escapa da palavra e toca na carne. Quando olhei aquele corpo grande de abraçar estirado na caixa de madeira, estranhei.
A saudade é um par de asas
Ninhos depois, uma ventania no quintal desencadeou ordem de despejo. O sopro se agigantou, expulsando o ninho da árvore. Esvoaçaram mãe, travesseiro, pai, colchão, crianças. Foi tudo pro chão. Aí, minha irmã correu pra cozinha, pegou o escorredor de macarrão e botou tudo em ordem. Cada criança na sua cama e um barbante amarrando a casa nova na árvore. Ficou tudo bem amarrado, mas virou móbile. O vento ninava e botava o pio pra dormir. Os pais tiveram menos trabalho e a ninhada vingou. A macarronada de domingo foi adiada.
Gosto de revisitar ovos e cascas vazias porque morrer não é talvez. É só cronograma, GPS e calendário. E a casca, mesmo quando vazia, sempre guarda uma história de voo.
Se o voo não vinga direito, tudo bem, porque a intenção mora lá. Desde a semente.
Olho pro meu pai e pra minha mãe. Eles fazem disputa. Meu pai bate o pé e diz que vai voar antes dela. Pode ser que sim e pode ser que nem. Não quero gastar pena adivinhando casca vazia. Quero adivinhar tico-tico, bem-te-vi e João em cada manhã, com hora marcada, na mesa do café. Minha mãe esquenta o leite e a conversa. Meu pai descasca o mamão e coloca os farelos de pão pro João.
Quando a casca quebrar e alguma vontade voar, sei que vai ser uma tentação grudar os cacos para construir mosaico de passado. Mas, depois que a vontade voa, a casca não cola mais. Melhor é festejar o voo.
Uma vez meu pai disse que é preciso ter um bocado de prontidão para se viver bem. Por isso passarinho parece desconfiado. Para a surpresa não pegar ele de voo curto. E para evitar de ficar tudo muito calmo e virar letargia.
L E N T A rgia.
Parece até nome de doença.
Imaginar casca vazia quando ainda cheia é jeito de apreço.
Gosto de assistir a vida acontecer.
- Para onde vocês VÃO com tanta pressa?
O corpo da gente é uma casca.
Dentro dele mora uma vontade.
Às vezes, a vontade rompe a casca e voa.
Aí, a casca fica vazia.
Quem fica, festeja o voo
porque voo não é pena.
E saudade... é um par de asas.
*Sibélia Zanon é Jornalista e escritora